29/04/2020

O jardim da poesia.


Hoje em dia é realmente muito difícil enxergar o que as palavras escondem. Em tempos onde a linguagem precisa ser clara, inequívoca, objetiva e informativa, a poesia ou qualquer linguagem um pouco mais artística não tem importância. Porém, por mais que se busque viver assim, não é para isso que os nossos corações, arrisco dizer que até as nossas línguas, foram feitos.

Comecei a fazer aulas de teatro quando tinha onze anos, e sempre me perguntavam a mesma coisa: como você faz para decorar todas essas falas? Sempre respondia que essa era uma das partes mais simples, só era preciso ficar repetindo incansavelmente as mesmas falas até que em algum momento meu cérebro entendesse que aquilo era importante e deveria ser guardado numa parte especial da minha memória.

Hoje em dia vejo como essa prática me ajudou muito! Ao decorar um texto, todas as vezes que me lembrava dele as palavras iam me revelando, pouco a pouco, o que o autor queria transmitir. E lembro-me de como fiquei maravilhada nas primeiras aulas de Estudos Literários na faculdade quando meu professor mostrou a infinidade de coisas que podemos extrair de apenas uma linha escrita por um grande autor.

Para melhorar nossa capacidade de enxergar estas coisas, além de ser imprescindível se expor todos os dias a um pouco de boa literatura, é muito importante sabermos alguns poemas ou trechos de algumas narrativas de cor. De cor vem do latim e significa do coração. Portanto, o verbo decorar significa guardar no coração. Essa prática cria em nós um lugar reservado para cultivarmos as belezas que colhemos. Lá iremos triturar, mastigar, revirar e encontrar o que está escondido: pequenas sementes preciosas que poderão criar um belo jardim dentro de nós.

Os textos literários também dão à nossa língua uma forma única! Nossas mensagens e textos escritos nas redes sociais, dificilmente passarão por este tipo de tratamento formal. Assim, tendo contato com essa forma diferente de organizar nossas impressões, vemos quão complexa é a nossa língua materna e de que maneira podemos estrutura-la para que sua forma corrobore com a mensagem que queremos transmitir.

Você não precisa necessariamente decorar poemas gigantescos e difíceis, mas também não vale decorar os poemas concretos que formam uma imagem ao repetir a mesma palavra em várias posições diferentes! Decore, inicialmente, poemas escritos em português para conhecer melhor nossa própria língua e desenvolver um olhar mais atento e amoroso. Se comprometa a decorar um por mês, e em um ano você já terá decorado doze poemas!

Deixo aqui em baixo alguns poemas que gosto muito! Se gostarem, podem escolher um desses ou todos, para decorar!

Meu epitáfio - por Cora Coralina

Morta... serei árvore
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas quebradas de uma lira

Enfeitai de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.

Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.

Busque Amor novas artes, novo engenho - por Luís de Camões

Busque Amor novas artes, novo engenho
Pera matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,
Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.

Remissão - por Carlos Drummond de Andrade

Tua memória, pasto de poesia,
tua poesia, pasto dos vulgares,
vão se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida, e seus pesares.

Mas, pesares de quê? perguntaria,
se esse travo de angústia nos cantares,
se o que dorme na base da elegia
vai correndo e secando pelos ares,

e nada resta, mesmo, do que escreves
e te forçou ao exílio das palavras,
senão contentamento de escrever,

enquanto o tempo, em suas formas breves
ou longas, que sutil interpretavas,
se evapora no fundo do teu ser?

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